«Falamos português, não vamos agora mudar o nome à língua. Mas não devia custarnos tanto assumir que nos exprimimos numa variante de galego. Por uma questão de justiça histórica, por respeito pelo nosso passado». O linguísta portugués Fernando Venáncio (Mértola, 1944) dá unha entrevista á veterana revista portuguesa Ler, editada polo Círculo de Lectores, mentres anuncia un libro para o outono vindeiro sobre historia da lingua. «Nós, os galegos» é o chamativo título que escolle o xornalista Paulo Barriga, para unha profunda e reveladora conversa na que o galego ou o reintegracionismo son atentamente radiografados por Fernando Venâncio.
«Estou a escrever uma História das origens do nosso idioma, para sair no outono. É uma História com várias histórias dentro, interessantes, apaixonantes mesmo, que nunca foram contadas e eu quero por força contar. Será um livro de divulgação, mas com base em labor científico, de que vou publicando os resultados em congressos e em revistas da especialidade. Gostaria de fazer com o idioma o que outros fazem com a astrofísica, ou o Jorge Buescu faz com a matemática e o Carlos Fiolhais com a ciência». Fernando Venâncio, naceu no Alentejo, pero estudou en Braga desde os 10 anos, «o meu primeiro conflito linguístico deuse com os canoros minhotos, que se riam da minha fala do Sul, porque a deles é que era a autêntica. Estavam lançados os alicerces do linguista, e eu só tenho de agradecerlhes» Cos anos converteuse en profesor da Universidade de Amsterdam e confésase herdeiro de Óscar Lopes, Jacinto de Prado Coelho ou Antonio José Saraiva.
Escolmamos aquí –a Ler non está disponíbel na rede mais si nos quiosques e nas bibliotecas portuguesas– parte das cuestións que Paulo Barriga formula a Venâncio sobre as relacións do galego e o portugués. Em termos linguísticos, afastámonos da Galiza para nos aproximarmos de Castela?
Foi isso, exatamente. Em Aljubarrota, em 1385, o partido nortenho perdeu. Uma parte da nossa nobreza, sempre muito ligada à galega, apoiou realmente o Mestre de Avis, mas a maioria dela, sobretudo a Norte, simpatizava com o poder castelhano. Perdendo a guerra, a língua falada por essa nobreza é perdedora também. Um professor da Universidade do Porto, José Carlos Ribeiro Miranda, fez uma descoberta interessantíssima. Durante o período da primeira dinastia, quem defendia a língua, quem efetivamente se empenhava nela e a chamava sua, era a nobreza. Ora, quando o partido de Lisboa sai militarmente, e depois politicamente, vencedor, o prestígio do idioma passa para o Sul. E há aqui um paradoxo que nunca recebeu a atenção devida. Foi a vitória sobre Castela que estimulou entre nós o interesse pela cultura castelhana. Digamos que ficámos à vontade perante ela. Toledo, a capital de Castela, tornouse, para o português economicamente desafogado, o lugar onde ficava bem ser visto, o que mais tarde serão Paris, Londres, Nova Iorque. Linguisticamente, é aqui também que se inicia a convergência com o castelhano como forma de atualizar a língua, sobretudo o léxico. Só que essa convergência, esse desejo de atualizarse através do castelhano, é até hoje o «ponto cego» da historiografia linguística portuguesa. É uma espécie de verdade inconveniente.
A presença do espanhol na Galiza é tão dominante que uma pessoa pensa: que heroicidade a daqueles galegos que, contra essa enxurrada castelhana dia e noite a todos os níveis, até ao nível cultural, se empenham em conservar o galego como língua viva.
Não obstante, mantivemos a nossa variante muito peculiar de galego.
Certo. Quando Portugal começou a existir, já tem uma língua, e ela é tudo menos primitiva. É uma língua muito bem estruturada, desenvolvida, muito forte, com características só dela, e que a diferenciam de todas as línguas circundantes: o moçárabe a sul, o castelhano a leste, o ásturo-leonês (a que o mirandês pertence) a nordeste. O reino de Portugal fez sua essa língua que estava disponível, e que havia séculos circulava oralmente: o galego. Mas esta é uma mensagem difícil de passar aos portugueses, e tanto o Ivo Castro como a Esperança Cardeira são dos poucos que tiveram a coragem de pôlo no papel. Disseram-no com todas as letras: a nossa língua veio de fora, e foi formada antes de existir Portugal, antes de haver portugueses. Eles dizem o contrário do que toda a gente quer ouvir.
O que querem as pessoas ouvir?
Que foram os portugueses a criarem uma língua sua. Historicamente, essa é uma ideia romântica, oitocentista: se há um país, há um povo, e ele cria a sua língua exclusiva. Foi, e será sempre, muito difícil tirar essa ideia da cabeça das pessoas, levá-las a aceitar que Portugal herdou, com naturalidade, essa única língua que havia disponível, que tinha sido criada na Galiza.
O galego também manteve, embora de forma autónoma, a sua evolução ou perdeu fôlego com a cisão do português?
Claro que manteve, e até se desenvolveu. O mito dum galego a definhar, coitadinho, ao separarse do português é-nos também muito aconchegante. Não, o galego continuou a ser falado, continuou até a ser cultivado por gente da nobreza, só não foi impresso, e isso, sim, foi determinante na sua perda de prestígio. Como se isso não bastasse, por volta de 1850 chegou a escolarização, e ela foi feita em espanhol, e não em galego, o que seria de facto impensável.
Tenho muita simpatia pelo reintegracionismo galego, sou o que poderia dizer-se um amigo solidário mas crítico.
Problemas que persistem.
São problemas tremendos. A presença do espanhol na Galiza é tão dominante que uma pessoa pensa: que heroicidade a daqueles galegos que, contra essa enxurrada castelhana dia e noite a todos os níveis, até ao nível cultural, se empenham em conservar o galego como língua viva. São heróis, mas, ao mesmo tempo, temo por eles. E acho que o medo que eu tenho é o medo que eles têm também. Simplesmente, eles não podem dar nome a esse medo porque, no momento em que o fizessem, seria o princípio do fim.
Que papel têm aí os chamados «reintegracionistas»?
Os reintegracionistas são um grupo a ter em conta, mas está longe de ser homogéneo. Existem os que desejam tirar proveito do português para dinamizar o galego, dandolhe características internacionais. Existem depois aqueles que querem dotar o galego duma ortografia portuguesa, mas conservando tudo quanto é genuíno. E há, por fim, e é atualmente o círculo dominante, os que queimaram todas as amarras com o galego e praticam uma escrita que se pretende indistinguível do português europeu. Alguns deles conseguem um português muito aceitável, embora laboratorial, sem espessura. Chamam a isso «português da Galiza». No fundo compreende-se: a única língua em que estão realmente à vontade é o espanhol.
Mas sentem-se uma espécie de vanguarda, não?
Claro. Esse sector radical opera já no futuro. Mas quando se lhes pergunta que cenário linguístico futuro desenhariam para a Galiza, e eu já fiz essa pergunta 20 vezes, desconversam. Recuam ao darem-se conta do que seria uma Galiza em que o português fosse, junto com o espanhol, cooficial. Não seria bonito de se ver. Hoje já existe uma tremenda diglossia, com o galego a ser remetido para os usos sociais menores. Para tentar compensá-lo, a expressão galega é desfigurada com todo o tipo de espanholismos. No dia em que o português entrasse nessa dança, acabaria rapidamente trucidado por um espanhol que, então, não teria contemplação nenhuma. Esse projeto é irrealizável, e eles sabem-no. Mas imaginam-se capazes de assustar Madrid, quando não chegam sequer a chatear… Recentemente deu-se uma cisão de elementos moderados que se opõem a essa deriva extrema.
É dececionante ver galegos apregoando os mitos portugueses, exactamente negadores do papel fundamental do galego na génese do idioma.
Houve um momento, nos anos 70, em que um filólogo português, Manuel Rodrigues Lapa, fez uma proposta aos galegos, oferecendo-lhes o português como língua «culta».
Exato, num artigo de 1973. Ele chamava a isso a «recuperação lite-rária» do galego. É, ainda hoje, um texto sagrado em círculos radicais. Só que Lapa não podia prever que, dois anos depois, com a morte de Franco, o cenário, inclusive o linguístico, se tornaria inteiramente outro, que o galego iria servindo de arma de arremesso político tanto à esquerda como à direita. Nem ele nem ninguém podia prevê-lo. Mas foi isso que deu asas ao galego para tornar-se a língua culta que é hoje. O reintegracionismo é então uma causa perdida?
É uma causa muito problemática. Tenho muita simpatia pelo reintegracionismo galego, sou o que poderia dizer-se um amigo solidário mas crítico. Vejo muito empenho, muita generosidade, mas existem falhas de informação estruturais, principalmente sobre o idioma. Trata-se dum movimento de ativistas, em que a questão da língua é um pretexto, nunca verdadeiramente um tema. Têm bons lexicógrafos, bons didáticos, mas o último, embora magnífico, estudo sobre a História da língua, de Fernando Corredoira, data de há 20 anos. E, sobretudo, não têm nenhum verdadeiro linguista, alguém que observa e explica o funcionamento do idioma. O último gramático reintegracionista, Carvalho Calero, morreu há 30 anos. Em suma, nunca tive ali um interlocutor. Tenho-os, sim, e muito estimulantes, no sector linguístico autonomista.
A falta de interlocutores no reintegracionismo tem a ver com o conteúdo da sua mensagem?
Tem tudo a ver. Na verdade, tratase de uma situação paralela à da minha relação com a linguística portuguesa. Nos dois casos, é a conceção de língua portuguesa o que faz emperrar o diálogo. Reina uma conceção de tipo essencialista, muito ideologizada, pouco interessada no devir, na História. É a tal conceção romântica de que falei: um país, um povo, uma língua. Mas o caso reintegracionista é particularmente grave. É dececionante ver galegos apregoando os mitos portugueses, exactamente negadores do papel fundamental do galego na génese do idioma. As ideologias empatam muito.
Diz que esta reaproximação deve ser feita através do incremento de uma política do léxico que tarda em aparecer. O que quer dizer com isto?
Pode parecer estranho, mas o léxico reflete, e refletiu sempre, uma política linguística. Os portugueses do Renascimento optaram por uma convergência com o léxico espanhol como forma de atualizar e internacionalizar o português. Digamo-lo assim: Camões e Vieira desejavam poder ser lidos diretamente em português no resto da Península e mesmo fora dela. Por isso se aproximaram o mais que podia dessa língua então internacional na Europa, que era o espanhol. Tudo isso se passou de modo muito implícito. Mas, no longo prazo, constituía um risco de assimilação total. Hoje, poderia estimularse uma internacionalização do galego por meio duma maior convergência com o português, mas agora informada e criteriosa. Reparese que, no plano da legislação, a política do galego autonómico implica um aproveitamento privilegiado do português, mas as opções factuais priorizam o fundo autóctone, o que é ótimo, mas deixam demasiadas aberturas a um léxico coincidente com o espanhol.
Eu concedo que o galego atual tem de operar no fio da navalha, mas um afastamento das soluções espanholas seria, pareceme, altamente vantajoso. Publiquei há uns anos, na Galiza, uma «proposta portuguesa para o léxico galego», [Grial, nº 186, 2010] onde expunha todas estas questões, mas essa intervenção não obteve eco nenhum. É um pouco frustrante.
Mas não correríamos o risco de, através do português, contaminarmos o galego com castelhanismos?
Sim, esse risco é real, e eu advertia também para isso. Existem dezenas e dezenas de castelhanismos portugueses correntes —como «aguaceiro», «granizo» ou «neblina», para ficarmos nos fenómenos atmosféricos— que o dicionário oficial galego condena. E faz muito bem.