Miguel Anxo Bastos: “Galego na Europa? Não é preciso, já está”

Miguel Anxo Bastos

«Uma das grandes conquistas do nacionalismo catalão nas suas negociações para a constituição da Mesa do Congresso é conseguir a oficialidade da língua catalã e do resto das línguas co-oficiais espanholas nas instituições europeias. No caso de tal iniciativa poder ser levada a cabo, algo bem mais complicado do que parece, não podemos deixar de felicitar os catalães e os bascos pela medida, mas a questão é saber se nos devemos felicitar na mesma medida. Digo isto por duas razões, uma porque a língua galega já é oficial na Europa e a outra porque se estabeleceria a ideia de que a língua que falamos é uma língua diferente da portuguesa, a ponto de necessitar de tradução oficial, algo com que não concordo, pois entendo que o galego e o português são a mesma língua falada aqui e ali com características peculiares. Aliás, não se trata apenas de uma posição de reintegracionistas radicais ou de romanistas como o Eugenio Coseriu, mas também a dum famoso (por ser acusado de espanholista) linguista, D. Gregorio Salvador, no seu livro sobre as línguas de Espanha, que se espantava com a divisão artificial que aqui se fazia entre o galego e o português, conhecendo ele bem as duas línguas. Se seguirmos esta lógica de diferenciação linguística, suponho que também teremos de traduzir o catalão por valenciano e o maiorquino por menorquino nas instituições da UE uma vez que, segundo alguns, são também línguas diferentes. Se, pelo contrário, determinarmos que o galego e o português são a mesma coisa, já podemos utilizá-los oficialmente, como fez Camilo Nogueira quando foi deputado europeu, falando o que nós chamamos galego e pedindo um intérprete português sem qualquer problema, e já dispomos de toda a documentação necessária na nossa língua na sua variante internacional.

Algo semelhante está a acontecer com a rotulagem dos produtos na nossa língua, pedida neste jornal há alguns dias. Quando vou às compras, vejo que cada vez mais produtos estão corretamente rotulados, suponho que porque muitas empresas utilizam a Península Ibérica como unidade de distribuição dos seus produtos, o que me ajuda a conhecer os nomes corretos de muitos novos produtos alimentares ou de limpeza que não tinham um nome tradicional, mas que agora o têm seguindo o génio da nossa língua e sem ter de recorrer ao espanhol. Suponho que o que se está a defender é a rotulagem na variante territorial da língua portuguesa aqui falada e não vejo a necessidade de fazer as empresas incorrerem em mais custos só porque alguns teimam em querer diferenciá-la. Insisto em que o principal é estabelecer a definição do que é a nossa língua, e reitero-o porque parece haver uma certa ambiguidade no mundo nacionalista, pelo menos na maioritaria, a este respeito. As forças não nacionalistas parecem ser mais claras e defendem que se trata de mais uma das línguas espanholas, exclusivamente confinada ao território do Estado. Por um lado, “a nossa língua vive e floresce em Portugal” e, por outro, pedimos coisas que já nos estão disponíveis, como plataformas audiovisuais com programação em galego, que basta um clique para obter, ou o já referido estatuto oficial na Europa. Este debate de definição é muito relevante, não só porque afeta a nossa estratégia política e as nossas relações internacionais, mas também porque, se a ideia de unidade linguística for correta evitaria não só que fizéssemos exigências com pouca utilidade, mas evitaríamos contribuir ainda mais para enfraquecer a nossa língua, afastando-a do tronco comum e dialectalizando-a. Se nós próprios não somos claros a este respeito, não podemos esperar que os atores políticos externos o sejam».

Cf. Nós Diario: Galego na Europa? Não é preciso, já está

Mario Regueira: “O segredo melhor guardado do país”

«[…] Editar literatura portuguesa em galego?

Estas semanas a generosidade duma editora galega punha nas minhas mãos outro clássico da literatura portuguesa “traduzido” para galego. Por mais que a edição fosse tão formosa como costuman ser estas coleções e que a adaptação ortográfica fosse encarregada a uma pessoa que admiro, soube imediatamente que não o leria, ainda que o livro despertasse a minha curiosidade o suficiente como para encomendar uma edição portuguesa no dia seguinte […].

Há quem diga que justamente essa é a questão: que algumas pessoas, por razões profissionais ou familiares, temos um contacto com a língua portuguesa que a maioria das pessoas não tem. Cresci numa casa com livros em português que o meu pai lia para mim pronunciando “à galega”. Interessei-me logo pelas línguas e a literatura e quando tive curiosidade por Antero de Quental, Clarice Lispector ou Saramago fiz questão de procurar os livros em português, apesar de todas as livrarias da minha cidade fazerem esforços para me vender traduções em castelhano. Talvez seja uma coisa minha, ainda que a experiência também me diga outras coisas: durante anos voltava das minhas viagens a Portugal carregado de livros infantis para as crianças dos amigos que estas devoravam sem quase notarem, no máximo perguntando por algum termo solto, mais ou menos como quando liam com ortografia galega. Sei que nos dias de hoje uma minoria de galegos e galegas continua a fazer o mesmo, oferecendo este tipo de produtos culturais às suas crianças, também com audiovisual na variante brasileira. Por outro lado, uma parte nada desprezível das editoras do país que se dedicam à língua galega publica numa ortografia convergente ou mesmo com idêntica grafia ao que conhecemos por português. Pode ser uma teima, mas também tenho a sensação, muitas vezes, de que o segredo melhor guardado da Galiza é que a imensa maioria das pessoas galego-falantes podem ler em português com um esforço mínimo. E isto é, em boa medida, independente da guerra de fundo que às vezes se manifestou vandalizando alguns livros.

Tradução e edição nas relações culturais

É certo que igual que uma língua não é só uma ferramenta de comunicação, uma tradução não serve só para fazer algo intercompreensível. Quando se traduziu o Quixote para galego foi um ato mais simbólico do que uma necessidade linguística. Muitas vezes, estas “traduções” do português cobrem um papel de aproximação entre os dois países, e às vezes mesmo estão financiadas por fundos relacionados com a integração europeia. Penso, porém, que muitos desses esforços bem intencionados teriam melhor fortuna noutra direção: uma edição adaptada para o público galego de certas obras não pasa necessariamente por uma adaptação ortográfica supérflua. A maior parte das vezes pode ser mais relevante saber o seu contexto histórico e literário, entender a sua relevância. Compreender o outro no que é diferente, não nas coisas que são praticamente iguais ou simples variantes da nossa realidade. E, obviamente, não ignorar a vantagem de que esse galego do sul devolva parte do vigor perdido ao minguado e arbitrário vocabulário que sancionam instituções como a Academia.

[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]».

Cf. PGL: “O segredo melhor guardado do país”.