Marco Neves e Sam The Kid visitarão a Escola Oficial de Idiomas de Santiago de Compostela e o IES Xelmires II na segunda-feira dia 4 de dezembro. Estes dois comunicadores da língua portuguesa vêm falar sobre dois dos seus livros, sobre o português, sobre o galego e sobre tudo o que as pessoas quiserem perguntar.
«[…] Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com características que a identificam e a distinguem das outras línguas em redor.
O que chamavam as pessoas a essa língua que já era, em muitos aspectos, a nossa? Não lhe chamavam nem galego nem português: chamavam-lhe linguagem, com toda a probabilidade. Era a língua do povo. Nós, agora, olhando para trás, podemos chamar-lhe «português», o que não deixa de ser anacrónico, ou «galego», o que não deixa de assustar algumas almas mais sensíveis, ou «galego-português», para agradar a gregos e a troianos (como se esses fossem para aqui chamados). Na escrita, durante todos esses séculos do primeiro milénio, o latim continuou rei e senhor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível, outras vezes de forma mais clara. Continuar lendo “Qual é a origem da língua portuguesa?”
«Quando andamos pela Europa, estamos habituados a que ninguém nos compreenda quando falamos português. Ora, há um povo que percebe o que dizemos, mas nós nem notamos…
Quando vamos à Galiza, nem sempre reparamos que, além do castelhano, há por lá outra língua. E, no entanto, essa língua está bem visível em muitos locais. Por exemplo, nas placas da estrada. Sempre com cuidado (não vá bater no carro da frente), repare na «Rede de Estradas do Estado» por cima da castelhana «Red de Carreteras del Estado».
Se não puder ir lá ver ao vivo, deixo aqui uma foto para ajudar (o nome da «autopista» está em castelhano, mas a indicação da rede está nas duas línguas):
Depois, os nomes das terras estão em galego. A população sempre usou estes nomes, mas, durante algum tempo, os nomes nas placas da estrada foram escritos em castelhano. Hoje, não é isso que acontece. Os topónimos galegos são escritos, oficialmente, em galego: «A Coruña», «A Guarda», «Ourense», entre tantos outros.
O manual da Porto Editora para ensino secundário utiliza o livro de Marco Neves, “ O galego é o português são a mesma língua?”, editado pela Através Editora em 2019.
«O manual escolar usa o estudo de Marco Neves “O galego é o português são a mesma língua?” para documentar o tema arredor de literatura trovadoresca, em particular para a contextualizão histórica-literária. E aí explicasse para as crianças: “Tudo indica que a nossa língua começou nesse noroeste da Península, muito antes da criação de Portugal. Ninguém lhe daria nome, mas como estamos na Galécia, podemos falar de galécio -ou galego.
Quando chegamos ao século XII, a língua na rua era o tal galego, designado pelos seus falantes usando a palavra “linguagem” -era a língua da fala dos galegos e dos novíssimos portugueses. (…)”».
«Vou dar três exemplos de falsos amigos galego-portugueses. Começo no «labrego», avanço pelo «grelo» e acabo nos perigos que se escondem na palavra «bico»…
Muitos de nós conhecemos as palavras que nos enganam por serem demasiado parecidas. São os falsos amigos. Mesmo dentro de cada língua há muitas armadilhas: basta tentar usar «rapariga» ou «puto» no Brasil, só para dar dois exemplos (e nem me atrevo a falar do «gozar»). Às vezes, até entre regiões do mesmo país há destes desaguisados.
Ora, há um tipo de falsos amigos pouco conhecido por cá. São os falsos amigos galegos. Afinal, o galego é a língua mais próxima do português — havendo muitos galegos que não se importam nada de afirmar, bem alto, que galego e português nem sequer são línguas diferentes. Os palavrões são quase iguais…
Próximos como estão, não há que admirar que haja uns quantos falsos amigos…
«Labrego»
O primeiro falso amigo é muito inocente. Longe de ser para maiores de 18, é para todas as idades. A verdade é que é difícil encontrar portugueses que não se riam quando descobrem que, na Galiza, existe um Sindicato Labrego Galego.
Sim, um labrego, na Galiza, é apenas e só um lavrador. Já um labrego, em Portugal, até pode ser um lavrador — mas também há labregos fechados em escritórios ou vestidos de fato inteiro. Não consta que, por cá, se tenham organizado num sindicato.
A origem da palavra é a mesma — mas as palavras dão guinadas e, de repente, o que é banal em certo sítio é um insulto um pouco mais abaixo…
«Grelo»
A história ficou famosa, pelo menos entre quem liga a estas coisas. O município galego das Pontes promove anualmente um festival do grelo. Nada contra: comer verduras faz bem e um festival deste tipo só pode ser coisa boa.
O festival é coisa em grande, pois até tem um website — compreende-se que o município tenha decidido traduzir o tal website para espanhol a partir do original galego.
Abrande agora o leitor, como fazem tantos condutores ao passar por um acidente. Pois aquilo que aconteceu foi um autêntico acidente de tradução. Com feridos graves!
O nome do festival — ou da feira — era bastante claro em galego: «Feira do grelo».
Já a tradução para espanhol ficou, no website, com este lindo aspecto: «Feria clítoris».
Não contente, o texto continuava: «El clítoris es uno de los productos típicos de la cocina gallega.» — o que, imagino, deve surpreender bastante os peregrinos que chegam a Santiago…
O que se passou?
Bem, o município decidiu poupar na tradução (ah, não faça isso!) e foi ao nosso amigo Google Translate […]».
Imagine um mundo em que a nossa língua está a desaparecer…
«Peço ao leitor que imagine uma verdadeira catástrofe linguística em Portugal: o português é ainda a língua mais falada no país, mas há outro idioma a invadir as conversas. As gerações mais velhas falam, maioritariamente, português, mas os mais novos cada vez menos. Nas cidades, o outro idioma está espalhado por todo o lado e poucos conversam em português. Em muitas vilas, ouvimos português na boca dos adultos, mas as crianças já brincam na outra língua. Todos aprendem português na escola, mas usam-no cada vez menos. Pondo números à catástrofe: cerca de 70% dos falantes com mais de 70 anos falam português; mas entre as crianças até dez anos, apenas 20% usam a nossa língua. O que diríamos? Diríamos que a língua estava a caminhar para o desaparecimento. Quem se importasse com ela ficaria seriamente preocupado — não que a vida noutra língua não seja possível, claro está. Mas a nossa língua, a língua dos nossos avós, da nossa literatura estaria a desaparecer. Seria, de forma contida, algo triste. Seria uma perda cultural irreparável. Uma catástrofe cultural.
Ora, é isso mesmo que está a acontecer na Galiza: os números que acima referi são reais, mas referem-se ao uso do galego no próprio território onde é a língua própria — e oficial, em conjunto com o castelhano. Todos os galegos aprendem galego na escola. Mas, em casa, é muito habitual termos avós que conversam entre si em galego e netos que conversam entre si em castelhano. Todos sabem as duas línguas, mas o uso é muito diferente de geração para geração. Quem se preocupa com a língua galega, na Galiza, está inquieto. Mais do que inquieto!
O galego tem outro problema. Durante séculos, não foi oficial: só nos anos 80 do século XX se tornou língua oficial, apesar de sempre ter sido a língua da larguíssima maioria da população até então. Ora, na época em que passou a ser a língua da administração galega, havia duas correntes: alguns especialistas defendiam que o galego era uma língua separada de todas as outras e que deveria usar uma ortografia e uma norma que, nas suas escolhas, a aproximavam de certas opções do castelhano. Por exemplo, o uso do «ñ» e do «ll». Uma outra corrente defendia que o galego devia aproximar-se mais do português — afinal tanto o galego como o português descendem duma mesma língua medieval. Esta última corrente, chamada reintegracionismo, defende, no fundo, que o galego e o português são variantes da mesma língua. Um dos grandes defensores do reintegracionismo, nessa época, era o filólogo e escritor Ricardo Carvalho Calero.
[…] Em Portugal, pouco ou nada ouvimos falar destas questões galegas. E, no entanto, o galego — em qualquer uma das suas variantes — está muito, muito próximo do português (em especial do português popular do Norte). Ou bem que é a mesma língua ou a língua mais próxima da nossa.
A nossa língua ou a nossa língua-irmã está a desaparecer aqui bem perto, a norte da fronteira. O galego de hoje em dia descende da língua que falavam os primeiros portugueses — e os galegos de então, claro. Faz parte da nossa história. Encontramos por lá palavras tão portuguesas e tão esquecidas como «asinha» (que os galegos escrevem, muitas vezes, «axiña»). Os galegos usam os nossos artigos, muitos dos nossos verbos, têm uma sintaxe arrepiantemente próxima da nossa. Até têm, vejam bem, a «saudade», assim mesmo, escrita desta maneira (também têm a «morriña», porque nisto das palavras há sempre lugar para mais uma).
Por isso, digo: o Dia das Letras Galegas — principalmente num ano em que homenageia um escritor que decidiu usar «lh» para escrever o seu nome e que defendia a aproximação ao português — é também um pouco nosso.
O que podemos fazer? Nada de especial: afinal, o galego só pode ser salvo pelos galegos. Mas podemos ouvi-los com mais atenção, usar a nossa língua quando conversamos com galegos, começar a conhecer um pouco melhor os nossos vizinhos do Norte, vizinhos que — quando não estão a falar castelhano — falam qualquer coisa que se não é a nossa língua é o diabo por ela».
«[…] Quando Afonso Henriques nasce, nas ruas já ouvíamos algo com características que hoje consideraríamos muito portuguesas e muito menos latinas. Como exemplo, já se notaria a queda do «n» e o «l» em muitas palavras que, noutras línguas (como o castelhano) ainda se mantêm – por exemplo, a «luna» latina passou a «lua» no português e manteve-se «luna» no castelhano.
Apesar de ser já, em traços largos, a nossa língua, ninguém usava a designação «português» para a língua. O termo comum seria «linguagem», a linguagem do dia-a-dia, desprezada e sem forma escrita. Era, no entanto, mesmo sem nome, uma língua completa. As línguas vão mudando ao longo dos séculos, transformando-se e dividindo-se, mas – na oralidade – nunca estão numa fase imperfeita ou decadente. Estão sempre em contínua mudança. (A escrita é outra história…)
Agora, a surpresa: a tal linguagem que saía da boca de Afonso Henriques desenvolveu-se, a partir do latim vulgar, numa parte do que é hoje o Norte de Portugal – mas também na Galiza. Naquele momento, não havia uma fronteira linguística entre o novo reino e o reino a norte. A língua de Afonso Henriques era a língua latina própria do território da antiga Galécia romana. Para sermos precisos, a língua desenvolveu-se numa parte do território da Galécia, que incluía parte daquilo que é hoje o Norte de Portugal e a Galiza, como explicado no livro Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio, excelente leitura para quem quiser saber mais sobre a origem da nossa língua.
Por altura da fundação do reino, a tal linguagem da rua, a língua da Galécia, começou a ser escrita – e há, aliás, muito boa literatura naquilo que hoje chamamos «galego-português» (um nome que ninguém usou até muitos séculos depois). A língua própria da antiga Galécia era uma língua que chegou a ser usada pelos reis castelhanos para escrever poesia – e foi usada, como aprendemos na escola, por D. Dinis na sua poesia e, cada vez mais, em documentos oficiais. Era o nosso português antes de se chamar português.
A língua da Galécia tornou-se a língua do novo reino de Portugal. Com alguma naturalidade, séculos depois, começou a aparecer o nome de «português» como designação da língua do reino – sem que a língua deixasse necessariamente de ser a mesma que se falava ainda a norte do Minho, na Galiza.
E no Sul? Na altura em que Afonso Henriques se tornou rei de Portugal, o Sul estava sob domínio muçulmano. A língua da população era, no entanto, o moçárabe, ou seja, a particular evolução do latim no Sul da península. Com a expansão do novo reino de Portugal para sul, a língua do Norte começou a invadir os novos territórios, sofrendo algumas influências do moçárabe e, através deste, do árabe. A língua da Galiza e do Norte tornava-se, também, a língua do Sul de Portugal.
Como a capital ficou estabelecida em Lisboa, a forma particular da língua nessa cidade ganhou um prestígio particular, sem que tal significasse que fosse, de alguma maneira, a melhor forma de falar a língua. No Norte, o português continuou a ser falado como sempre foi. Mesmo na Galiza, onde a língua foi, durante séculos, raramente usada na escrita, a população continuou a falar, pelos séculos fora, algo muito próximo do que saía da boca dos portugueses do Norte […]».
«[…] Este pedido não é novidade: a transmissão das nossas televisões lá por cima está prevista na Lei Paz-Andrade (em galego: «Lei nº 1/2014, do 24 de marzo, para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonia»), aprovada em 2014 pelo Parlamento da Galiza — por unanimidade! Todos os partidos, da esquerda à direita, concordaram: querem ver televisão portuguesa na Galiza e querem o ensino do português nas escolas galegas. O certo é que a lei não teve muitos efeitos — o que o acordo assinado pelo BNG e o PSOE prevê é a aplicação das normas já aprovadas (o acordo prevê, na sua versão em galego, «facilitar a execución dos acordos do Congreso e do Parlamento galego para a recepción en Galicia das radios e televisións portuguesas»).
Talvez estes pedidos surpreendam muitos portugueses. Mas são
naturais. O galego e o português estão tão próximos que, na Galiza, há
uma antiga discussão sobre se são ou não a mesma língua. Sejam ou não, o
certo é que um galego compreende um português sem grandes dificuldades
(principalmente, diga-se, se o português falar um sotaque do Norte).
Incentivar o ensino do português e a transmissão das nossas televisões
na Galiza permite aos galegos aproveitar a sua própria língua para
comunicar com todos os falantes de português, que ainda são uns quantos.
Para nós, é uma surpresa. Mas não devia ser: a nossa língua tem origem no que já se falava no noroeste da Península no momento em que Afonso Henriques se tornou rei de Portugal. Era uma língua que não se chamava português (os falantes chamar-lhe-iam «linguagem») e que se falava no que é hoje a Galiza e o Norte de Portugal […].»
A Através editora, chancela editorial da
AGAL, desejava desde quase o seu início publicar um livro sobre a
questão identitária da nossa língua, na Galiza, mas de uma ótica
portuguesa. Então apareceu um dos melhores candidatos, Marco Neves,
professor na Universidade Nova de Lisboa, tradutor, autor de vários
livros de divulgação linguística e do imperdível blogue, para os amantes
do facto linguístico, Certas Palavras.
Marco, o título do livro é uma pergunta. Dá para ser respondida com uma sílaba ou precisamos de mais?
Dá para ser respondida com uma sílaba — é
o que muitos fazem na Galiza quer a sílaba seja «sim» quer seja «não».
Em Portugal, dificilmente encontramos alguém que tenha uma resposta tão
rápida… Caímos, facilmente, num «não» hesitante, que será a resposta
mais óbvia a uma pergunta que raramente ouvimos. Depois, há também casos
em que a pergunta é incómoda. Ora, neste livro, tento mostrar a razão
por que há quem faça a pergunta, o que — espero — irá abrir os olhos aos
leitores portugueses para a proximidade real entre o português e o
galego. Ou seja, sim, podemos responder à pergunta com uma sílaba, mas
eu proponho mais umas quantas sílabas antes de chegarmos a alguma
conclusão. Estou em crer que essas sílabas extra serão uma boa surpresa.