Marco Neves: E se a nossa língua estivesse a morrer?

Imagine um mundo em que a nossa língua está a desaparecer…

MARCO NEVES
Marco Neves

«Peço ao leitor que imagine uma verdadeira catástrofe linguística em Portugal: o português é ainda a língua mais falada no país, mas há outro idioma a invadir as conversas. As gerações mais velhas falam, maioritariamente, português, mas os mais novos cada vez menos. Nas cidades, o outro idioma está espalhado por todo o lado e poucos conversam em português. Em muitas vilas, ouvimos português na boca dos adultos, mas as crianças já brincam na outra língua. Todos aprendem português na escola, mas usam-no cada vez menos. Pondo números à catástrofe: cerca de 70% dos falantes com mais de 70 anos falam português; mas entre as crianças até dez anos, apenas 20% usam a nossa língua. O que diríamos? Diríamos que a língua estava a caminhar para o desaparecimento. Quem se importasse com ela ficaria seriamente preocupado — não que a vida noutra língua não seja possível, claro está. Mas a nossa língua, a língua dos nossos avós, da nossa literatura estaria a desaparecer. Seria, de forma contida, algo triste. Seria uma perda cultural irreparável. Uma catástrofe cultural.

Ora, é isso mesmo que está a acontecer na Galiza: os números que acima referi são reais, mas referem-se ao uso do galego no próprio território onde é a língua própria — e oficial, em conjunto com o castelhano. Todos os galegos aprendem galego na escola. Mas, em casa, é muito habitual termos avós que conversam entre si em galego e netos que conversam entre si em castelhano. Todos sabem as duas línguas, mas o uso é muito diferente de geração para geração. Quem se preocupa com a língua galega, na Galiza, está inquieto. Mais do que inquieto!

O galego tem outro problema. Durante séculos, não foi oficial: só nos anos 80 do século XX se tornou língua oficial, apesar de sempre ter sido a língua da larguíssima maioria da população até então. Ora, na época em que passou a ser a língua da administração galega, havia duas correntes: alguns especialistas defendiam que o galego era uma língua separada de todas as outras e que deveria usar uma ortografia e uma norma que, nas suas escolhas, a aproximavam de certas opções do castelhano. Por exemplo, o uso do «ñ» e do «ll». Uma outra corrente defendia que o galego devia aproximar-se mais do português — afinal tanto o galego como o português descendem duma mesma língua medieval. Esta última corrente, chamada reintegracionismo, defende, no fundo, que o galego e o português são variantes da mesma língua. Um dos grandes defensores do reintegracionismo, nessa época, era o filólogo e escritor Ricardo Carvalho Calero.

[…] Em Portugal, pouco ou nada ouvimos falar destas questões galegas. E, no entanto, o galego — em qualquer uma das suas variantes — está muito, muito próximo do português (em especial do português popular do Norte). Ou bem que é a mesma língua ou a língua mais próxima da nossa.

A nossa língua ou a nossa língua-irmã está a desaparecer aqui bem perto, a norte da fronteira. O galego de hoje em dia descende da língua que falavam os primeiros portugueses — e os galegos de então, claro. Faz parte da nossa história. Encontramos por lá palavras tão portuguesas e tão esquecidas como «asinha» (que os galegos escrevem, muitas vezes, «axiña»). Os galegos usam os nossos artigos, muitos dos nossos verbos, têm uma sintaxe arrepiantemente próxima da nossa. Até têm, vejam bem, a «saudade», assim mesmo, escrita desta maneira (também têm a «morriña», porque nisto das palavras há sempre lugar para mais uma).

Por isso, digo: o Dia das Letras Galegas — principalmente num ano em que homenageia um escritor que decidiu usar «lh» para escrever o seu nome e que defendia a aproximação ao português — é também um pouco nosso.

O que podemos fazer? Nada de especial: afinal, o galego só pode ser salvo pelos galegos. Mas podemos ouvi-los com mais atenção, usar a nossa língua quando conversamos com galegos, começar a conhecer um pouco melhor os nossos vizinhos do Norte, vizinhos que — quando não estão a falar castelhano — falam qualquer coisa que se não é a nossa língua é o diabo por ela».

Cf. Certas Palavras