Artigo que faz parte do especial “OGALUS: Lusofonia” polo día mundial da lingua portuguesa, 5 de maio do 2023 (Cf. IGADI)
«Nélida Piñon foi uma mulher forte e, de certo modo (e com a necessária cautela), parecia-se com várias personagens de suas obras, tanto de contos quanto de romances. Era também “uma mulher de raça”, como se alude a Marta, a protagonista da novela A casa da paixão (1972).
Esta escritora e intelectual brasileira (Rio de Janeiro, 1937-Lisboa, 2022) sempre manifestou um grande interesse por explicar seu país, sua cultura e, no fundo, por explicar sua singularidade. Foi uma autora ‘herdeira de diversas culturas’ e, muito especialmente, da galega, que lhe transmitiu sua família -procedente de Terra de Montes, em Pontevedra-, e da brasileira, de que sempre se sentiu parte.
Sua presença era habitual, há décadas, em numerosos congressos e encontros internacionais –incluídas feiras internacionais do livro-, para além de em instituições acadêmicas dentro e fora do Brasil. De fato, durante anos viajou com frequência por diferentes lugares do mundo, e não apenas nas últimas décadas em que suas obras foram mais traduzidas e premiadas fora das fronteiras do Brasil (com prestigiadas distinções, como o Prêmio Juan Rulfo -1995- ou o Príncipe de Asturias das Letras -2005) e seus capitais literário e simbólico alcançaram destacada relevância.
A jovem que visitou a terra de sua família na Galiza quando era criança (e onde viveu durante quase dois anos) fez muitas outras vezes essa viagem –física, emocional e ficcional-; mas também descobriu, com apenas dois livros no mercado (Guia-mapa de Gabriel Arcanjo e Madeira feita cruz) e a condição de escritora recém estreada, um mundo diferente para ela em uma viagem aos Estados Unidos em 1965 –convidada pelo Departamento de Estado-, que lhe permitiu conhecer colegas de prestígio e comparar sua situação com a dos/as escritores/as de seu país, já mergulhados nos inícios de uma ditadura que se prolongou até 1985.
Em 1990, e com vários livros já no mercado (o último na altura, Doce canção de Caetana), entrou na Academia Brasileira de Letras (ABL), quem só em 1977 abriu suas portas às escritoras, com a incorporação de Rachel de Queiroz. Nélida Piñon passou a ocupar a cadeira número 30, proferindo um discurso que intitulou “Sou brasileira recente”. Nele, lembrava as origens galegas de sua família quem, com sua ida para o Brasil, lhe “ofertaram um país de presente” (Piñon, 2002: 78). Poucos anos depois, em 1996, tornou-se a primeira mulher a presidir esta instituição, no momento de seu primeiro centenário. Consciente dessa singularidade, em seu Discurso de Posse como Presidente (“A pátria do verbo”), no dia 12 de dezembro de 1996, lembrava que “tinha gosto em servir à literatura com memória e corpo de mulher” (Piñon, 2002: 10), que escrevia por ser sua “a memória coletiva da minha espécie feminina” e assumia o cargo “como mulher, escritora, cidadã brasileira” agradecendo aos membros da ABL que, “libertos de preconceitos confiaram na minha condição feminina” (11).
Uma voz de escritora que mostrou numerosas e diversas marcas (pessoais e literárias) de sua condição de mulher, ao longo de uma trajetória literária de mais de seis décadas, e cujas lembranças ecoam em dois de seus livros de caráter biográfico: Coração andarilho (2009) e Livro das Horas (2012). A autora de obras que abordam o erotismo a partir da perspetiva da mulher –publicadas em momentos muito diferentes da história sócio-política do Brasil- como A casa da paixão (ACP, 1972) e Vozes do deserto (2004) é também a escritora dos contos “Ave de Paraíso” e “Colheita” de Sala de Armas (1973) ou “I love my husband” e “O revólver da paixão” de O Calor das Coisas (1980), em que aborda a situação da mulher no espaço doméstico.
As protagonistas de seus textos são rebeldes (como Esperança de A República dos Sonhos –RS- ou Marta, de ACP), distraídas (Ana, de Madeira feita cruz ou Monja, de Fundador), submissas como Antonia (RS) ou decididas como Breta (RS). Umas e outras, em geral, encontram nessas atitudes modos de contestar aquilo que lhes foi imposto socialmente e atingem assim “um espaço próprio para viver, por vezes, fora do habitual ‘destino de mulher’ a que estavam habituadas” (Villarino Pardo, 2000: 418).
Em várias ocasiões, essas personagens aproximam-se de uma imagem que Piñon usou para se referir à Sara bíblica: “dona de uma memória oficialmente submersa” (Piñon, 1994: 55). Ela, ao casar com Abraão (interlocutor de Deus), “condenara-se ao mutismo, a viver uma memória sem nome, sem arquivo” (57). Através desta figura e de forma metafórica e resumida, a autora apresentou uma visão da história das mulheres no texto “A intriga de Sara” de seu livro O pão de cada dia. Fragmentos (Piñon 1994: 55-60) ou, de modo mais extenso, na conferência “O sorriso de Sara ou a memória clandestina”, proferida na Universidade de Santiago de Compostela (Galiza) em junho de 1996, como convidada do programa de eventos de seu Vº Centenário.
Nélida Piñon, quem já tinha recebido a Medalha Castelao da Xunta da Galicia em 1992 e regressado às terras da família em várias ocasiões, tornou-se -de novo com caráter pioneiro- a primeira mulher a obter a distinção de Doutora Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela (USC), em 1998. Foi uma distinção que homenageou sua premiada e dilatada trajetória como escritora e intelectual, como evidenciou também um colóquio dedicado a sua obra (“Nélida Piñon: diferentes olhares e leituras”) naquela mesma altura, na Faculdade de Filologia da USC1. Em seu discurso como Doutora Honoris Causa, intitulado “Retorno ao centro”, evocou as memórias galegas -próprias e familiares- para tentar explicar melhor seu percurso literário em que, assinala, “desfruto, como escritora, da pujança e riqueza da língua portuguesa, tenho o Brasil como pátria, sou filha desta amada Galícia” (Piñon, 2002: 66)2.
Como mencionado anteriormente, é também a autora de A República dos Sonhos (1984), uma homenagem ficcional ao papel dos emigrantes (especialmente os galegos e galegas) na construção do Brasil. Escreveu também O livro das horas –com forte presença do ‘eu’ e de seu universo- em que lemos, com o eco do discurso de 1990 na ABL: “Há muito sinto-me antiga no Brasil. Roubei da história pátria os episódios que me faltavam, e sobra-me agora autoridade para crer em uma nação que reparta benesses” (Piñon, 2012: 137).
São várias as marcas que singularizam a autora carioca e algumas as ‘obsessões repertoriais’ mais presentes em seus textos e depoimentos, como a defesa do ofício de escritor ou a presença da memória e do mundo clássico; mas são, sem dúvida, a condição feminina e a “galeguidade” seus traços mais significativos, tanto como mulher quanto como escritora […]».
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