«A Lisboa do século XXI, as suas ruas mais movimentadas, alguns dos seus emblemáticos monumentos, canções, novelas e peças teatrais não se poderiam perceber na sua totalidade como os conhecemos sem o grande contributo, esforço e integração ao longo dos últimos três séculos dos numerosos galegos e galegas que cá chegaram, casaram com portugueses e deixaram a sua marca, ainda que 300 anos e picos depois poucos saibam que descendem de galegos ou que o seu apelido é de origem galega.
Os primeiros a chegar vieram no século XVII, procedentes do Sul da Galiza, fugindo da fome e da miséria, para trabalhar na construção do Aqueduto das Águas livres, a fazer o que quase ninguém queria fazer.
Já no século XIX e começos do XX, vieram à boleia dos avanços duma efervescente sociedade burguesa com grande poder económico, instalada na Baixa pombalina. Foi nesse momento que surgiram as primeiras tascas e restaurantes de galegos nessa zona, algumas das quais perduram até hoje com os mesmos nomes e prestígio ainda que, em muitos casos, com diferentes proprietários, como o Gambrinus ou o Solar dos Presuntos, para citar exemplos conhecidos. Poucos sabem que o bacalhau com grão, um prato tão tipicamente português, é galego. Ainda hoje perdura na cultura popular das aldeias do outro lado da fronteira e ficou para sempre na gastronomia lusa. O mesmo acontece com a típica ginjinha, que aparece em todos os guias turísticos e faz as delícias dos visitantes de todo o mundo. No Rossio ainda continua aberta a taberna mais antiga de ginjinha, fundada por um galego em 1840. Mas nem tudo se limita à gastronomia e às tabernas, já que no Teatro Nacional Dona Maria atuaram nessa altura numerosos atores galegos. Além disso, nas conhecidas tertúlias do Café Gelo, também no Rossio, participaram junto com Fernando Pessoa e Almeida Garrett numerosos intelectuais do outro lado do Minho.
Na altura da Guerra Civil Espanhola, entre 1936 e 1939, e posteriormente, quando se impôs o regime franquista em Espanha, instalaram-se em Lisboa galegos de diferentes estratos sociais, alguns intelectuais de esquerda e profissionais liberais, do bando republicano, fugindo do regime de Franco. Lisboa acolheu-os de braços abertos. Uns ficaram para sempre e outros aproveitaram para viajar até à América e instalar-se por lá, no México, na Argentina ou nos Estados Unidos. Muitos deles instalaram-se no Bairro Alto, onde abriu a primeira sede do Centro Galego de Lisboa, em 1908.
Nos anos 90 do século passado, a imigração galega em Lisboa mudou radicalmente. Os expatriados da Corunha, de Vigo, Pontevedra, Santiago e Ourense, formados nas melhores universidades, excelentes conhecedores de Portugal, dos portugueses e familiarizados com a sua língua pela influência do galego, foram escolhidos pelas suas empresas para se instalarem em Lisboa, dirigir as suas delegações em Portugal e formar os funcionários lusos na política da empresa. A partir de 2010, com a crise internacional e o resgate de Portugal, o expatriado galego em Lisboa diminuiu muito. Mas hoje a situação alterou-se, com a numerosa chegada de investigadores e estudantes de Erasmus galegos às universidades lusas, incentivados pela proximidade da língua e pelas parcerias entre as instituições do Norte e do Sul do Minho.
Quem quiser conhecer in situ a Lisboa mais galega, recomendo calçado cómodo, paciência e curiosidade para fazer um longo percurso a pé, cansativo mas muito interessante, que começa no belo palacete da sede do Centro Galego de Lisboa, na Rua Júlio de Andrade, junto ao Jardim do Torel, cedido pelo milionário de origem galega Cordo Boullosa. Depois, descer pelas numerosas escadinhas até às Portas de Santo Antão, ir até o Rossio e ao Teatro Dona Maria, subir pela calçada do Duque até ao Largo do Carmo, onde culminou a Revolução dos Cravos, em que participaram capitães galegos. Já no Bairro Alto é de paragem obrigatória, na Rua da Rosa, a primeira sede do Centro Galego, onde se realizaram ao longo dos anos muitos casamentos entre galegos e lisboetas, prova da grande integração que perdura até hoje.
Na populosa Bica moravam muitos aguadeiros galegos, na Rua Garrett, no Chiado, encontramos o prédio da livraria Bertrand, que foi propriedade de Cordo Boullosa, fundador da Galp. A rota bem pode acabar na Praça Martim Moniz, onde existiram numerosas casas de hóspedes e hotéis de galegos, além de restaurantes bem conhecidos que ainda perduram como o Ramiro.»
Cf: O coração galego de Lisboa