Hoje o galego dá sinais de estar a caminhar para uma posição frágil: quase uma em cada quatro crianças galegas “pouco ou nada” fala de uma das duas línguas oficiais da região (a outra é o castelhano) e o número de falantes que a usam como primeira língua cai abruptamente. As estatísticas do Instituto Galego de Estatística, referentes a 2018, mostram um destino negro de um idioma que nos últimos anos foi sofrendo uma acentuada castelhanização e perdendo presença nos media e espaço social, especialmente entre os mais jovens.
«Nossa Senhora nunca ia falar galego»
Quando Portugal se afirmou como país independente, em 1143, a língua que se falava era o galego. Fernando Venâncio defende em Assim Nasceu Uma Língua (2019) que «denominar português qualquer variedade linguística anterior a 1400 é resvalar num anacronismo, e pelo menos numa sofrível incongruência». Já a Galiza, pela sua organização territorial tradicionalmente dispersa em aldeias, «tem um povo que conservou até 1850 um galego muito puro».
Gomes Pais e Ramiro Pais seriam dois nomes sem história, se não tivessem firmado, ainda durante o reinado de D. Afonso Henriques, aquele que se julga ser o primeiro acordo escrito, na sua maioria, naquilo a que hoje chamamos galego-português. Era um acordo entre irmãos, fidalgos bracarenses, com terras contíguas para os lados de Santa Maria de Arnoso, actual concelho de Vila Nova de Famalicão. Um “pacto de não-agressão”, com a validade de dois anos, que também previa a protecção em caso de eventuais agressões de terceiros. O documento foi identificado em 1999 pelo galego José António Souto Cabo na Torre do Tombo, o mais importante arquivo nacional.
1556884422925_Pacto_Irmaos.pngSouto Cabo, professor e investigador de Língua Portuguesa na Universidade de Santiago, situou o documento «provavelmente em 1174». Porém, só no século XV se assiste, em especial em Lisboa, a uma transformação que dará origem ao que hoje se chama português, marcando uma quebra de influência do Norte do país, mais próximo à realidade galega. As transformações do idioma passam a ter origem no eixo central do país (entre Coimbra e Lisboa), mas a mutação da língua acontece com uma forte influência externa do castelhano, pelo que são incorporadas no português centenas de termos (como moreno, teimoso ou pujante) de origem castelhana.
O linguista Marco Neves diz que, ao contrário do português, «que se desenvolveu como língua oficial de um Estado com uma tradição literária e normativa», na Galiza, e até ao século XIX, o galego vivia e evoluiu na esfera oral, «mas com uma tradição literária muito mais fraca e sem um Estado a proteger a língua».
A passagem para a era da literatura só se daria no século XIX, com Rosalía de Castro, conhecida como a mãe da literatura moderna em galego e autora de uma das suas mais notáveis obras, Cantares Gallegos. Entre os seus poemas, há um dedicado a Luís Vaz de Camões e a Portugal, onde «deu seu fruto a planta abençoada [o galego] com sem igual pujança». Há também uma história que demonstra a forma como os falantes de galego foram de certa forma oprimidos num contexto de um castelhano dominante na organização das principais instituições, como a Igreja Católica. Conta Fernando Venâncio que, depois das aparições marianas em Fátima, Nossa Senhora havia também aparecido na Galiza a uma menina com uma dúzia de anos. A criança disse à família que tinha visto Maria e a família foi contar ao padre. O pároco, que não era galego, perguntou à criança o que a Virgem lhe tinha dito. E ela lá explicou, em galego. «Estás a mentir. Nossa Senhora nunca iria falar em galego…», ouviu da boca do padre.
O debate em torno da língua galega está hoje dividido entre duas frentes distintas: isolacionismo e o reintegracionismo, também chamado lusismo. Os isolacionistas defendem o galego como língua totalmente independente. Do outro lado estão aqueles que, com mais ou menos força, defendem que galego e português são variantes de uma língua única e, por isso, deve existir no galego uma aproximação à ortografia do português e ao espaço lusófono, oque permitiria que a Galiza se afirmasse como um território excepcional onde se praticariam duas das línguas mais faladas do mundo (espanhol e o português). A visão actualmente seguida pela Real Academia Galega (RAG), que tem a tutela da elaboração das normas ortográficas do idioma, é a de que o galego tem uma norma autónoma, mas há várias associações, com especial destaque para a Associaçom Galega da Língua (AGAL), que defendem o reintegracionismo ou até o binormativismo (a convivência entre as duas normas distintas, como acontece na Noruega).
A divisão está nas coisas mais simples: sejam os dias da semana, como “quarta-feira” na visão dos reintegracionistas ou “mércores” na forma oficial. E aqui também há uma corrente que quer recuperar a denominação histórica, escrevendo “cuarta feira”. O próprio nome da nacionalidade histórica não é motivo de consenso: “Galicia” (norma RAG e castelhano) ou “Galiza” (reintegracionista e português).
«Na Galiza, o Português não é língua estrangeira»
falame-galego.jpgÉ neste contexto de intenso debate sobre a política linguística, a nível académico e a nível político, que Marco Neves publicou, em Junho de 2019, o livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?, na editora galega Através Editora. A resposta à pergunta é difícil de resumir num parágrafo (até porque precisa do contexto das 120 páginas), mas pode ser simplificada na palavra, que também é galega, depende: «O galego e o português vêm funcionando como línguas diferentes, mas a verdade é que a proximidade é tal que poderia haver uma aproximação e poderiam funcionar como uma mesma língua», defende ao P2 [suplemento do jornal Público] Marco Neves.
Essa proximidade hoje só não é tão reconhecida pelos portugueses porque a fonética do galego «tem sons que associamos ao castelhano», mas, «com uma ou outra dificuldade», é «possível conversar com galegos sem mudar de língua». Além disso, «seja ou não a mesma língua», o galego «faz parte da história da nossa língua».
A “Lei Paz-Andrade”, aprovada por unanimidade no Parlamento da Galiza a 24 de Março de 2014, prometia essa abertura «para o aproveitamento da Língua Portuguesa e vínculos com a lusofonia». Mas continua, na sua grande parte, por cumprir. Apesar de constar nos cinco pontos da lei, que ficou conhecida pelo nome do reintegracionista Valentín Paz-Andrade, continua a não ser possível ouvir rádio ou ver televisão portuguesa no território galego (e, de forma recíproca, ver canais galegos em sinal aberto em Portugal). Também na educação os números mostram que só cerca de 10% das escolas dispõem do Português como oferta formativa. Na Estremadura, são 71%, com mais de 22 mil alunos a frequentar as aulas e com o Governo regional ( Junta) a considerar a língua como uma «prioridade absoluta».
Valentim Fagim, professor de Português na Galiza, explica que os números da oferta educativa são baixos por dois factores: poucas vagas abertas para professores de Português e porque «as elites políticas não tiveram interesse em aproveitar a vantagem competitiva da sociedade galega». Ao P2 diz que «na Galiza o português não é uma língua estrangeira, apesar dos esforços nesse sentido», mas, «mesmo com o esquema de línguas diferentes, um galego já tem um desempenho alto em português, por exemplo na compreensão». Um estudo do Conselho da Cultura Galega, publicado na íntegra em Maio a propósito do primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, mostra que 73% dos galegos inquiridos consideram que na Galiza se devia estudar Português. Seis em cada dez dizem ter competências na língua portuguesa.
O presidente da Academia Galega da Língua Portuguesa, contactado pelo P2, diz que «há que mudar a visão do galego como língua isolada por outra mais aberta e inserida na comunidade linguística do português». Rudesindo Soutelo fala em «interesses criados durante décadas de políticas antilusófonas», e denuncia «a intervenção política, espanhola e galega, nos assuntos académicos» que têm condicionado as «possibilidades de desenvolvimento» do galego.
Para se perceber a importância dada ao debate linguístico na Galiza, basta olhar para as secções do Nós Diário (actualmente, o único jornal diário regional impresso em língua galega). Ao mesmo nível de secções como Política, Sociedade, Economia ou Internacional surge também A Língua.
Na Internet ganhou fama o programa #DígochoEu, que surgiu no início do ano «com principal objectivo de tentar que as pessoas melhorem o seu galego», mas que já saltou para as salas de aula (e para as aulas à distância). Diariamente, a jornalista verinense Esther Estévez produz pequenos vídeos com erros comuns do galego para as redes sociais e site da Rádio e Televisão da Galiza (CRTVG), usando o humor e a simplicidade para combater os castelhanismos e outros erros da língua. Ao P2, Esther explica que a «melhor forma de chegar às pessoas é sendo próximo delas». Diz que prefere «ensinar rindo», longe da visão «puramente académica». No #DígochoEu também há espaço para «apontamentos lusófonos» que mostram os encontros e os desencontros linguísticos entre as duas margens do Minho.
É também nas parcerias entre a Televisão da Galiza (TVG) e a RTP que a “Lei Paz-Andrade” tem funcionado melhor. Do historial de anos de boas relações surgiram programas e séries já exportadas internacionalmente, como Auga Seca e Vidago Palace, disponíveis no catálogo da plataforma de streaming HBO. A TVG colocou ainda o jornalista Alberto Mancebo no Porto e apostou no açúcar para ensinar português na Galiza, usando a telenovela portuguesa Morangos com Açúcar. Ao P2, a RTP confirmou o interesse em continuar com a produção de conteúdos com a TVG, mas não quis comentar a possibilidade de passar a emitir canais em sinal aberto na Galiza, como está previsto no acordo assinado já neste ano pelo Bloco Nacionalista Galego (BNG) e Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), que abriu portas à investidura de Pedro Sánchez como presidente do Governo de Espanha.
Reintegrar ou independentizar uma língua?
Falar em reintegracionismo é falar em homens e mulheres que, desde há décadas, lutam pela salvaguarda do galego acreditando que a sua preservação está na aproximação à lusofonia. Escritores, académicos, jornalistas ou políticos que, por exemplo, optaram por escrever “lh” em vez de “ll” ou “nh” em vez de “ñ”.
Carvalho Calero foi um destes homens: reprimido pela ditadura franquista, porque esteve do lado republicano durante a Guerra Civil Espanhola, e, mais tarde, um professor de Galego marginalizado institucionalmente por ter optado por seguir a norma reintegracionista. Calero nasceu em Ferrol em 1910 e foi registado com o nome Ricardo Carballo Calero, mas, a partir de 1981, trocou os “bês” pelos “vês” e o “duplo l” pelo “lh”, passando a assinar como Carvalho Calero. A vida deste intelectual ficou marcada pela escrita, pela defesa da Galiza e do galego e pela resistência às ditaduras de Primo de Rivera e Franco, seu conterrâneo. Está na origem do partido galeguista (antifascista e nacionalista galego) em 1931, licencia-se em Direito, e escreve as bases para um estatuto de autonomia de uma Galiza no seio de uma república federalista.
A Guerra Civil Espanhola condena-o a 12 anos de cadeia quando cai frente às tropas franquistas na Andaluzia, em 1939. Fica preso em Jaén, no Sul de Espanha, mas é libertado condicionalmente, dois anos depois, em 1941. Uma das suas obras mais notáveis – o romance Scórpio(1987) – retrata a sua geração e esse tempo com recurso a uma soma de relatos com vários pontos de vista e com uma dúvida sempre presente: «Poderei algum dia regressar à minha terra?» «Hitler quer ser o dono do universo. Estaline, desde a toca do Kremlin, olha, enigmático, para a Europa. Roosevelt apoia a sua paralisia sobre muletas de dialéctica puritana. O leopardo inglês e o galo francês são um gato e um pinto que querem entender-se com Franco. Fim da República.»1
Ainda chegou a dedicar-se ao ensino, mas foi colocado longe da escola pública até 1965, ano em que se tornou no primeiro professor de Galego da Universidade de Santiago de Compostela. Desde então, vai escrevendo sempre: teatro, poesia, ensaios e narrativas. É nos anos 70 que se torna defensor da adopção da ortografia etimológica do galego, optando pela visão reintegracionista, por oposição à adopção de uma ortografia com base no castelhano. E é essa opção que o faz perder peso institucional, nomeadamente na Real Academia Galega.
O afastamento de Carvalho Calero «foi um erro político de enorme magnitude», segundo o presidente da AGAL, potenciado por uma década de 70 em que «triunfou uma espécie de populismo linguístico que levou muitas pessoas a acharem que o galego poderia sobreviver sozinho no mundo». Ao P2, Eduardo Maragoto diz que a «sociedade galega está a mudar», porque «há uns anos o que dizíamos não era considerado patriótico e pouca gente nos queria ouvir», mas agora «a sensação é contrária».
Carvalho Calero morreu em 1990. Nessa altura, era membro da Academia das Ciências de Lisboa e membro honorário da reintegracionista Associaçom Galega da Língua (AGAL).
O professor José Luís Rodríguez, da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Santiago de Compostela, que partilhou os corredores da instituição com Carvalho Calero, diz ao P2 que Calero «é uma figura excepcional na cultura galega, enquanto autor de uma obra extensíssima e multifacetada, que vai do campo da criação até à investigação literária e linguística, tanto filológica como de sociopolítica linguística». José Luís Rodríguez é, também ele, um reintegracionista que dedicou a sua vida ao ensino da Filologia Portuguesa e Galega. Recorda-nos o que dizia Carvalho Calero: «O galego ou é galego-português ou galego-castelhano.» A frase é hoje o principal slogan do reintegracionismo e Rodríguez não tem dúvidas em afirmar que o galego, «se for galego-português, tem um futuro evidente; se fosse galego-castelhano, o seu futuro seria diluir-se na língua do Estado até ficar numa simples coloração dialetal da mesma». Fernando Venâncio contesta, fala na frase como um «statement político», nascida numa época «de grande crispação no campo linguístico galego» que é «grandemente infeliz, e só compreensível por uma recusa do galego como idioma».
«O que não se conhece não se ama nem se entende»
bandeiragaliza.gifApesar das contingências provocadas pela pandemia de covid-19, e num gesto que é visto pelos partidários do reintegracionismo como uma abertura da RAG a esta corrente, neste domingo [17 de maio de 2020] Carvalho Calero é o homenageado pela Real Academia Galega (RAG) no Dia das Letras Galegas. Esta data marca os 157 anos desde a publicação do livro de poemas de Rosalía de Castro Cantares Gallegos e que é tradicionalmente celebrada recordando a obra de um autor galego já falecido.
Num estúdio da Televisão da Galiza, no distante ano de 1987, sentaram-se frente a frente o actual presidente da RAG, Víctor F. Freixanes,e Carvalho Calero. Na recta final da entrevista, Freixanes diz: «Há uma pergunta que não lhe posso deixar de fazer: o galego vai salvar-se no português?» Carvalho Calero suspira suavemente. E diz que «não se pode admitir que o castelhano beneficie de todos os dialectos peninsulares e extrapeninsulares para formar a língua espanhola e que o galego se recolha nas províncias traçadas por Javier de Burgos [autor da divisão territorial de Espanha em 1833] renunciando a beneficiar aos elementos que introduziu no idioma que evoluiu de forma independente [o português]». Ou seja: «Não peço para o galego outra linha de conduta que não tenha seguido o castelhano; se não, não pode ser competitivo com ele.»
Freixanes ficou com dúvidas sobre o que isso significava na prática e retorquiu com uma pergunta que ia um pouco mais longe: «Mas isso significa incorporar-se plenamente na ortografia portuguesa?» «Possivelmente, sim, mas é uma questão a estudar», respondeu Calero. «O que tu chamas ortografia portuguesa não é outra coisa que a ortografia histórica do galego. Hoje, o problema reduz-se quase só à questão da ortografia.»
Ao P2, o presidente da RAG põe água na fervura nas aspirações reintegracionistas. Víctor Freixanes assegura que «a RAG tem uma postura bem definida que não vai mudar». A título pessoal, diz: «A posição do galeguismo foi o de olhar para Portugal, para o português, para o português do Brasil, e para as falas africanas como espaços de irmandade a que nos devemos aproximar e que nos enriquecem.» Mas sem nunca esquecer aquilo a que chama «princípio básico»: «A língua galega é a língua galega, não é a língua portuguesa.» Freixanes deixa um desabafo: «É preciso fomentar o conhecimento entre as partes.» Mas teme que os galegos «saibam e queiram saber muito mais dos irmãos de Portugal do que os portugueses queiram saber dos galegos». «O esforço tem de vir de ambas as partes.» Até porque, como se diz em galego, «o que non se coñece non se ama nin se entende».’
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Trabalho do jornalista português Ruben Martins, que o publicou no suplemento P2 do jornal Público de 17 de maio de 2020 (manteve-se a ortografia original, anterior à norma vigente).’
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.