Marco Neves: Quando Afonso Henriques se tornou rei de Portugal, que língua ouvíamos nas ruas de Guimarães? Seria latim? Seria português?

«[…] Quando Afonso Henriques nasce, nas ruas já ouvíamos algo com características que hoje consideraríamos muito portuguesas e muito menos latinas. Como exemplo, já se notaria a queda do «n» e o «l» em muitas palavras que, noutras línguas (como o castelhano) ainda se mantêm – por exemplo, a «luna» latina passou a «lua» no português e manteve-se «luna» no castelhano.

Teresa de Leão, mãe de Afonso Henriques, condessa-rainha de Portugal, representada num manuscrito do mosteiro galego de Toxosoutos
Teresa de Leão, mãe de Afonso Henriques, condessa-rainha de Portugal, representada num manuscrito do mosteiro galego de Toxosoutos

Apesar de ser já, em traços largos, a nossa língua, ninguém usava a designação «português» para a língua. O termo comum seria «linguagem», a linguagem do dia-a-dia, desprezada e sem forma escrita. Era, no entanto, mesmo sem nome, uma língua completa. As línguas vão mudando ao longo dos séculos, transformando-se e dividindo-se, mas – na oralidade – nunca estão numa fase imperfeita ou decadente. Estão sempre em contínua mudança. (A escrita é outra história…)

Agora, a surpresa: a tal linguagem que saía da boca de Afonso Henriques desenvolveu-se, a partir do latim vulgar, numa parte do que é hoje o Norte de Portugal – mas também na Galiza. Naquele momento, não havia uma fronteira linguística entre o novo reino e o reino a norte. A língua de Afonso Henriques era a língua latina própria do território da antiga Galécia romana. Para sermos precisos, a língua desenvolveu-se numa parte do território da Galécia, que incluía parte daquilo que é hoje o Norte de Portugal e a Galiza, como explicado no livro Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio, excelente leitura para quem quiser saber mais sobre a origem da nossa língua.

Por altura da fundação do reino, a tal linguagem da rua, a língua da Galécia, começou a ser escrita – e há, aliás, muito boa literatura naquilo que hoje chamamos «galego-português» (um nome que ninguém usou até muitos séculos depois). A língua própria da antiga Galécia era uma língua que chegou a ser usada pelos reis castelhanos para escrever poesia – e foi usada, como aprendemos na escola, por D. Dinis na sua poesia e, cada vez mais, em documentos oficiais. Era o nosso português antes de se chamar português.

A língua da Galécia tornou-se a língua do novo reino de Portugal. Com alguma naturalidade, séculos depois, começou a aparecer o nome de «português» como designação da língua do reino – sem que a língua deixasse necessariamente de ser a mesma que se falava ainda a norte do Minho, na Galiza.

E no Sul? Na altura em que Afonso Henriques se tornou rei de Portugal, o Sul estava sob domínio muçulmano. A língua da população era, no entanto, o moçárabe, ou seja, a particular evolução do latim no Sul da península. Com a expansão do novo reino de Portugal para sul, a língua do Norte começou a invadir os novos territórios, sofrendo algumas influências do moçárabe e, através deste, do árabe. A língua da Galiza e do Norte tornava-se, também, a língua do Sul de Portugal.

Como a capital ficou estabelecida em Lisboa, a forma particular da língua nessa cidade ganhou um prestígio particular, sem que tal significasse que fosse, de alguma maneira, a melhor forma de falar a língua. No Norte, o português continuou a ser falado como sempre foi. Mesmo na Galiza, onde a língua foi, durante séculos, raramente usada na escrita, a população continuou a falar, pelos séculos fora, algo muito próximo do que saía da boca dos portugueses do Norte […]».

(Ler completo em Certas Palavras)

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